terça-feira, 31 de março de 2015

Mas é hostil o mundo que nos espera


(Rodrigo Contrera)

(Rubricas entre parênteses)

(Cenário. Palco dividido em 5 quadrados ou retângulos - a depender da largura do cenário -, da seguinte forma: três na frente e dois atrás, 1 à frente, 1 atrás, etc. até completar os cinco. Os limites entre os quadrados podem se sobrepor ou mesmo os de trás podem superar os limites laterais dos da frente. Ordem dos quadrados/retângulos: 1 2 3
                                                                                                                                                                                                              4 5. Os primeiros quadrados/retângulos estão à frente)
Ato 1

(Cenário. Quadrado 2. Palco nu. Espelho pendurado no fundo do palco, em ângulo, reproduzindo os movimentos de quem está se mexendo deitado no palco)

(Três toques da peça. Luz ambiente.)

(Personagens. 1: Homem magro, por volta dos 40 anos. Vestido (figurino a definir). Entra no palco saindo do fundo da platéia. Posta-se de perfil,  de pé, olhando à sua frente. Voz em off, acompanhando os movimentos do homem)

Voz em off de 1 - Aqui talvez eu possa ser.

(Avança, suave, sem pose, sem cansaço, sem agitação qualquer. Despe-se totalmente. Deita-se no meio do palco, à frente, com os pés para o fundo do palco. Pausa)

Voz em off de 1 - Um espelho de água. Flutuando. Podendo afundar. Tentando não afundar.

(Pausa)

Voz em off de 1 - Sondeio minhas carnes e nervos. Sinto-os. Apalpo-os com o pensamento. Distingo-os, um a um, em busca de nós. Nós, nudos, knots. Nós, nós mesmos. Nós criamos os nós.

(Faz que relaxa o rosto e o corpo)

Voz em off de 1 - Os nós. Onde estão eles.

(Abre os olhos. Fixa o teto. Fala com ênfase)

Voz em off de 1 - Incontáveis pontos de tensão por debaixo da pele.

Voz em off de 1 - Aqui. Outro, aqui. Outro. Aqui. Aqui. Ligeiras tensões. Imperceptíveis ao olhar humano. Em mim. Sinto-as. Sinto-as.

(Fecha os olhos)

Voz em off de 1 - Será imaginação minha? Será mera imaginação? Será invenção?

(Abre os olhos)

Voz em off de 1 - Não, eles existem. Estão aí. Estão porque... estão.

(Fecha os olhos)

Voz em off de 1 - Quase posso vê-los. Estão em mim. E são meus. Sou eu.

(Sorri)

Voz em off de 1 - É gostoso saber disso. É objetivo. Realmente. Não há quaisquer dúvidas disso. Eu sei. Ninguém mais pode saber. Ninguém. Todo mundo só sabe de si.

(Abre os olhos)

Voz em off de 1 - De me devassar eu sempre me furto. Como se fosse frescura.

(Pequena pausa)

Voz em off de 1 - Bobagem.

(Começa a mexer-se, as pernas, de um lado para o outro, de forma alternada, brincando consigo mesmo)

Voz em off de 1 - Nada. Isso sou eu. É o que eu quero. Entender-me. Sentir-me. Apalpar-me. Vivenciar-me como se fosse uma igreja. Como se fosse um eu todo sagrado.

(Começa a estirar-se, com força, uma perna após a outra, devagar, mas até o limite do estiramento. Faz reais demonstrações de dor e prazer)

Voz em off de 1 - Uhn!

(Por volta de 10 s cada perna, diversas vezes, em momentos alternados, um "uhn" que realmente é de prazer)

(Aparece um segurança no palco, que atravessa o local, olha o sujeito, abre e entra numa porta ao fundo. O homem espanta-se com sua presença, mas mal se mexe)

Voz em off de 1 - É alguém aqui. Que me vê. Que ao me ver me invade. Como sempre.  Como sempre. Não. Não ligo. Não posso ligar. O teatro é dela. Que me protege. Nada vai dizer. Nada irá dizer. Sou puro. Estou aqui. Inteiro.

(O segurança sai, anda um pouco e fala)

Segurança - Você sempre vai vir sozinho?
Voz de 1 - Sim.

(O segurança faz que se afasta)

Voz de 1 - O meu acordo com ela é esse. sempre aparecer sozinho.
Segurança - Tá.

(O segurança atravessa novamente o palco. Sai pela direita. O homem fecha os olhos. Continua os movimentos)

Voz em off de 1 - Quantas normas falsas. Quantas normas alheias. Quantas invasões. Estupros. Violências.

(Abre os olhos, sorri)

Voz em off de 1 - Aqui, as normas são minhas. Norma nenhuma. A minha, em conluio... com o universo. Mais é pedir... menos.

(Ao dizer "menos", faz movimentos mais rápidos, mais felizes. Pára, de repente)

Voz em off de 1 - O exercício consistia em não me levantar apoiado nos braços. Em não me levantar levantando o tronco. (Pequena pausa) Tudo bem. Parecia fácil. Mas agora, como faço para me levantar?

(Abre os olhos. Faz menção de levantar as costas com o quadril)

Voz em off de 1 - Já disse que isso, não. Violento demais.

(Faz menção de rodar e apoiar as mãos no tablado)

Voz em off de 1 - Isso, não, também. Forçado demais.

(Repete os movimentos diversas vezes. Desiste. Fecha os olhos)

Voz em off de 1 - Desisto. Esqueci. Não sei mais. Nem sei se quero saber.

(Faz rosto de quem tenta se lembrar de alguma coisa)

Voz em off de 1 - Ela havia me dito. Com calma. Suave, como um bebê. Com um rastejar nada incólume. Com um nada de esforço. Um nada.

(Desiste novamente. Passam-se uns vinte segundos. O homem começa, aos poucos, a se mexer de um lado para o outro. De repente, cai de bruços)

Voz em off de 1 - Taí. Gosto disso. De ficar assim.

(Troca o rosto de lado)

Voz em off de 1 - Assim.

(Tempo)

Voz em off de 1 - O saco coça um pouco. Uhn. Meio chato.

(O homem força-se para o lado e de repente cai voltado novamente para cima)

Voz em off de 1 - Uhn. Não.

(O homem repete o movimento acima duas ou três vezes. Com o tempo, começa a fazer movimentos mais rápidos e violentos. Com o movimento mais e mais agressivo, o homem vê-se obrigado a levantar os braços acima da cabeça, para finalmente rodar em si mesmo, sem parar, numa direção, com um movimento que se torna realmente agressivo, para si mesmo. Sente-se que o homem luta para não fazer ruídos de dor e prazer. Pára ao chegar ao mesmo lugar)

(As frases a seguir são ditas enquanto o homem se movimenta rapidamente. Com a urgência dos movimentos, aumenta a ênfase naquilo que é dito)

Voz em off de 1 - Avançar sem sair do lugar. Andar sem andar. Sair sem ir a nenhum lugar. Sem parar. Sem parar. (Pausa) Nada à frente. Nada atrás. Nada. Ninguém. (Pausa) Eu. Só eu. O carpete. O carpete. Um carpete. Humano. Um carpete. Humano. (Pausa) Nada em frente. Nada atrás. Nada aqui. Nada ali. (Pausa) Movo-me. Sem parar. Sem parar. Sem cessar. Em mim. Movo-me em mim. Sem sair do lugar. Sem ir a lugar. Nenhum lugar.

(O homem pára de bruços. As luzes movimentam-se de forma repetitiva, simulando a percepção dos olhos em movimentos repetitivos concêntricos. A voz em off acusa ecos, que desaparecem aos poucos)

(Sente-se a respiração do homem, que engolfa o ar e que respira como se aparentemente nunca o tivesse feito)

(Bota a cabeça para trás e olha para a platéia)

Voz em off de 1 - Ali. O que é isso. A entrada. A saída. Ora. A mesma coisa.

(Faz que olha as pessoas)

Voz em off de 1 - Não. Estou sozinho.

(Sorri)

Voz em off de 1 - Sozinho como numa peça. Num evento especial. Um homem encontrando a si mesmo. Nu. Pelado. Pica de fora.

(Vira-se. olha para o teto)

Voz em off de 1 - Nada.

(Aos poucos, o homem faz menção de querer se levantar. Mantém uma perna dobrada, outra esticada, espalha-se com os braços, não querendo realmente se levantar, mas apenas avançar de forma suave à frente, em direção da platéia)

Voz em off de 1 - À frente. À frente. Lá, à frente. Algo. Quero. Meu corpo. Quer. Ele quer. ELE quer. Finalmente. Só ele quer. Só ele.

(O homem fica com os dois pés no chão, fazendo menção de que pode avançar, mas não avançando um passo sequer, apenas fingindo que avança, fazendo menção, não saindo um mero mm do lugar)

Voz em off de 1 - Vou. Não vou. Fico. Não. Não fico. Vou. Vou. Vou? Não. Fico? Não.

(O homem fecha os olhos)

Voz em off de 1 - Um pêndulo. Como aquele em Paris. Igreja de Santa Genovena. O Pantheon. (Pausa) Um pêndulo. Como os relógios. Antigos. Como uma hipnose. Ih. Será que eu quero... ficar maluco? Como aquele menino do filme? Lorenzo? E o Bill, o Gates? O Billy em sua cadeira... de velho, de avô, de avó, para lá, para cá. Para lá, para cá.

(Abre os olhos)

Voz em off de 1 - Eu? 'magina.

(Aponta um lugar inexistente)

Voz em off de 1 - Algo lá. Algo lá. Onde. Não lá. Não aqui. Não exatamente em meu interior. Definitivamente não fora dele. Não fora. Não dentro. Entre os eixos. Entre eixos. Como aqueles esportivos. Motor entre eixos. Bugatti Veyron. 0 a 100 em 3 segundos.

(Faz cara de insatisfação consigo mesmo)

Voz em off de 1 - Entre eixos. Aqui? (Aponta o saco) Xi. (Sorri, como criança pega no ato. Ri, como criança)

Voz em off de 1 - Esquece. Quero ir. Ficar. Ninar. Dormir. Assim. De pé. Como no ônibus. Ao ir pra faculdade. Ao ir pro centro. Achar emprego. Ver gente. Fingir. Ter emprego. Sim, ter emprego. Fingir. Como há anos. No metrô. Fazendo cara de sério.

(Fica soturno de repente. Alivia o humor, de repente)

Voz em off de 1 - Esquece.

(Cai no tablado novamente. Não levanta por vários segundos)

Voz em off de 1 - Aqui eu páro. Não entro. Páro.

(Som de mosquito. Movimento brusco, afastando-o. Som mais forte)

Voz em off de 1 - Sai. Sai.

(Som do mosquito pára. Repentinamente, o homem faz que se levanta, lento, caindo em posição de engatinhar, com os antebraços no chão. Olha lugar algum)

Voz em off de 1 - E agora, essa?

(Diz acima como que surpreso com a posição assumida, de engatinhar)

Voz em off de 1 - Só faltava essa. (Rosto de estranheza) Só essa mesmo.

(Pausa)

Voz em off de 1 - Esquece.

(Faz que tenta sentir a si mesmo na posição, aceitando o que seu corpo lhe dita)

(Engatinha num e noutra direção, sem direção a seguir, indo e voltando, mas sempre avançando (ou seja, indo para a frente) pára, num ou noutro instante, sem se importar com o que faz, com o que vê, como o que sente. Fica de repente de costas para a platéia, face à parede)

Voz em off de 1 - Eu. Eu. Sou eu. ESTE sou eu. Este mesmo. Sem tirar nem pôr. Este, que o corpo me dita. Este, que o corpo me diz. Este. (Olha para si mesmo) Este, que anda. Que se espalha. Que se sente. Como pode sentir-se. Como qualquer um pode sentir-se. Como qualquer um. Qualquer um. Um. Eu. Um. Nem um. Nem eu. Nenhum. Nenhum?

(Gesto de estranheza interna)

(Desaba no chão, pernas abertas, braços abertos)

(As luzes se apagam)

(O homem reaparece, deitado ainda, pernas e braços abertos, mas agora com cueca e roupas a seu lado, espalhadas no tablado. Veste-se)

Voz em off de 1 - Curioso. Não fiz praticamente nada, aqui. Espalhei-me enquanto me estirava. Rolei para lá e para cá. Balancei-me como um pêndulo. Engatinhei. Ou de bebê, quem sabe. E estou literalmente acabado. Mas não cansado. Daria para ficar horas, dias seguidos, assim. Para sempre mais ficar mais acabado. Mas nunca cansado. Seria uma espécie de revivência? Seria um renascimento? Um renascer verdadeiro? Um reviver? (pausa) Por mais que me canse, mais me encontro. Não me canso. Me exulto. Enalteço. Pacifico. Inesgoto.

(Pausa)

Voz em off de 1 - De repente,
(O homem se levanta, aos poucos, numa lentidão exasperante, até que, ao dizer a palavra seguinte, as luzes estouram e desaparecem, como no primeiro BIG BANG)
Voz em off de 1 - ... SOU.

(O homem desaparece. Fade out.)

Ato 2

(Cenário. Quadrado/retângulo 3. Quadrado/retângulo vazio. Cadeira simples, de madeira comum, de espaldar reto, simples, no centro do palco. Espelho no fundo do palco, de aproximadamente 1,5m de altura, cobrindo lado a lado do quadrado/retângulo. Pode ser aproveitado o espelho do ato anterior, descendo-o, dispondo-o atrás do novo quadrado/retângulo e deixando-o na vertical)

(Personagens. 1: Homem. não muito alto, não muito baixo. Magro, muito magro. Camiseta listrada horizontal, mangas curtas, de listras grossas de cor preta/branca. sentado na cadeira. Olha para a platéia, fixo. Praticamente não se mexe. Pernas paralelas, pés plantados no chão. Fuma, mas praticamente não mexe os braços, que contudo não permanecem presos à cadeira)
(2: Voz de homem. Sem expressão, a não ser quando especificado)
(3: Homem. De pé. Atrás de 1. Não muito alto, não muito baixo. Gordo. Camiseta listrada, mangas curtas, com listras não tão grossas quanto a camiseta de 1, de cor vermelho/bege. O homem permanece imóvel durante todo o ato 1)
(4: Homem. Deitado/jogado no fundo do palco, de bruços, com pés com meias brancas em direção à platéia. Camisa branca, calça preta. Camisa fora da calça. imóvel durante as cenas 1 e 2)

Cena 1

(Música: Fratres, de Arvo Pärt. Tasmin Little (violino) e Martin Roscoe (piano). Bournemouth Sinfonietta, por Richard Studt (também violino II)).

(Escuridão total. A música começa, suave. Mais ou menos em 0’20”, aparece uma luz suave, muito suave, cuja função é apenas mostrar os contornos de 1. 3 permanece como se fosse uma sombra viva. Em 1’06”, com o som forte do piano, a luz estoura em 1, a ponto de destruir suas feições para a platéia. Com o decréscimo do tom do piano, a luz desce um pouco, permanecendo ainda muito forte. A luz origina-se de spots dos quatro lados de 1, todos direcionados a ele. Em 1’53”, 1 começa a falar)

1 (Tom mediano. fala inexpressiva. Conta como se fossem apenas fatos) - Eles me roubaram o 11 de setembro. Hoje todo mundo lembra das torres. Eu me lembro das bombas, lá no Chile. Disso, ninguém lembra. Mas lembram do Pinochet. (Fade off repentino da luz)

2 (Voz que surge de algum lugar, de trás, dos alto-falantes, mas não de uma pessoa. Tom inexpressivo, NÃO INQUISITÓRIO) - O que você estava fazendo quando as torres caíram?

1 (A luz forte reaparece de repente. Tom inexpressivo) - Dormindo, desempregado. Liguei a tv, vi aquele negócio em chamas. Veio um avião, bateu, ninguém falava nada. De repente, o negócio tremeu e caiu. Na hora eu ri. Não sei por quê. (Repentino fade off da luz. segundos. A luz reaparece)

1 - Um dia, preocupado com as coisas do mundo, fiz um trabalho imenso. Só a introdução tinha 30 páginas. Era sobre falas roubadas. Sabe como é. Eu não quero deixar você falar. Finjo que falo por você. Ou seja, eu roubo você. Entreguei ao professor, que me deu uma nota bem alta. Fui ver o que ele havia escrito. Tinham me roubado o trabalho. (Repentino fade off da luz)

2 (Tom inexpressivo. Não de pena, nem de troça) - Uma pena.

(Pausa de alguns segundos)

2 (Tom inexpressivo) Onde você estava quando o Ayrton Senna morreu?

1 (A luz reaparece de repente) - Assistindo a um campeonado de karatê. Dava para ver que tinha algo errado. Ninguém falou nada na hora. (Pequena pausa) Eu não gostava muito do Senna. Mas foi difícil para todo mundo agüentar. Lembram quanta piada surgiu logo em seguida? Eram anticorpos. É verdade. (Pausa. Fade off da luz. Segundos, poucos. A luz reaparece)

1 - Um dia, fiquei sabendo de um garoto que se meteu com a guerrilha armada. Li, pesquisei, entrei em contato com algumas pessoas e fiz um texto. Apresentei num concurso e não ganhei nada. (Pequena pausa) Eu não queria ganhar. Queria que se lembrassem. Mas eles se lembram da Yara, do Lamarca, Marighella. Gente importante. Queria que eles se lembrassem dos ninguém. Não se lembram do Bacuri. Não se lembram do Massafumi. Eu lembro. (Repentino fade off da luz. Segundos. A luz reaparece)

2 - Do que é que você foge?

1 - Não sei. Juro que não sei.

(Pequena pausa)

1 - Uma vez, fui num Fran's e encontrei um ex-colega de faculdade. Ele me disse: e o Pinochet, hein? Quis mandar ele à merda. Não mandei. Encontrei o sujeito alguns anos depois. Na época, o cara estava trabalhando no governo Lula, fazendo clipping. E não é que o cara começou a fazer marketing do governo na minha cara? Pedi pra ele parar. Ele parou. (Pequena pausa) O cara estava meio acabadão. Eu, não. (Fade off da luz)

2 - Onde é que você tava quando começou a primeira guerra no Iraque, em 92?

1 (A luz reaparece) - Num hotel no interior de São Paulo, a serviço. Ttrabalhava numa revista de assuntos rurais. Eu me lembro: estava batendo uma punheta.

2 - Você não sabia o que estava acontecendo?

1 – O que é você queria que eu fizesse?

2 - Você me decepciona.

1 - Pode ser, mas eu falo a verdade. e é disso que vc gosta.

(Luz desaparece. Escuridão TOTAL)

1 (Um pouco nervoso) - Alguém aí na platéia já ouviu uma bomba? Uma bomba real. Eu consegui reproduzir o som de uma. Num baixo elétrico. O resultado não é bem um som. Mas vai estar na minha peça.

2 (Tom inexpressivo, mas muito claro. Texto mais importante de toda a cena) - Ninguém liga pra isso. A história já se foi. Quem morreu, morreu, e quem não morreu, esqueceu.

1 - Eu sei. mas eu ainda estou vivo. Entendeu?

(Pausa longa)

2 (A luz reaparece) - Tá, mas onde é que você estava quando estouraram aquelas bombas em Londres e Madri?

1 - Não tenho a menor idéia. (Pequena pausa) Mas eu lembro onde eu estava quando mataram o Jean Charles no metrô de Londres. Eu estava viajando, com a Cris, no interior de São Paulo. Comprei o jornal, abaixei a cabeça, chorei um pouquinho e fui em frente.

2 - Entendo.

(Fade off da luz. segundos, intermináveis. A luz reaparece, menos forte)

1 - Ele virou filme, até. Quem diria. (Pausa) Eu queria chorar por todos mas não tenho tanta lágrima assim. E se eu ficar por aí chorando à toa sei lá o que vão falar. (Baixo) Na minha infância eles diziam que eu chorava porque era mariquinhas.

2 (Impositivo) - Deixa disso.

1 - Eu não consigo.

(Pausa)

(Texto mais importante da fala de 1. Dito suavemente, com calma, sem expressão, no limite da audição, sempre num tom mais baixo, realmente forçando o público a ouvir. Enquanto a fala transcorre, a luz diminui aos poucos, no limite do visível. A música mantém-se no mesmo volume, mas decai por ela mesma)

1 - Não estou só. Eles choram. Eu também. Mas agora eles se calam, e olham em outras direções. Eles pegam os celulares, enxugam as lágrimas, e se afastam. Tem alguém aí? Teve alguém aí? Não sei. (Pausa) Não estou só. Eles me olham atentos. Querem algo em mim. Querem algo que não sei se posso dar. Eu fico nervoso e provoco. Eles reajem e me chamam de escroto. Mas alguns tentam, e eu também tento. Com esses, o vai e vem se repete. Com eles, não estou só. (Pausa) Queria vê-los à minha frente, todos, nus, todas, nuas. Mas não posso. Eu mesmo não estou nu. Por isso, vejo-os lacrimejar, se mexerem, ansiosos. Esperam que eu diga algo. Mas no fundo não quero. Quero-os apenas aqui, comigo. (Pausa) Queria, como se fosse eterno, deitar-me neles. Colocar-me em seus braços, que me carregassem, que carregassem minhas dores e minhas culpas. Mas não posso. Sou apenas um homem. Um homem que se deixa afetar, como eles, um homem que se deixa enganar, como eles, um homem que engana e que mente, como eles. (Pausa) Por isso, me afasto. Como eles.

(A música continua, até o fim da música. Sem luz. Sem fala. Sem presença. Sem nada)

Cena 2

(Música: Cantos in Memory of Benjamin Britten, de Arvo Pärt. Tasmin Little (violino) e Martin Roscoe (piano). Bournemouth Sinfonietta, por Richard Studt (também violino II)).

(2 parado atrás de 1. Escuridão completa. Imobilidade completa. A música começa. Aparece uma luz suave no canto esquerdo do palco (Referência: platéia). A luz permite apenas divisar as formas de 2. 2 principia a falar o texto a partir de 1’30”. Tom inexpressivo, no limite da não-audição. Dirige-se à platéia, mas a ninguém)

2 – Fugindo eu consigo entrar e sair e sair e entrar. Fugindo eu posso ficar. Fugindo eu posso ir embora. Quem foge não precisa ser aceito. Quem foge pode tudo.

(Começa a andar, a passos lentos, aproximando-se do lado esquerdo de 1, que está fumando)

2 - Os escravos fugiam em direção ao litoral. Quem não podia ficava no caminho e fazia seu quilombo. Quem foge não pede remorsos. Quem foge olha pra frente. Quem teme olha pra trás. Quem foge fala manso. Quem foge bate forte. Eu fujo porque não tenho mais nada a perder. E sempre ganho porque só me resta fugir.

(Fala com mais ênfase)

2 – O homem é livre e vive preso, diz Rousseau. Estou preso e vivo livre, digo eu. Preso a mim mesmo, de quem não consigo fugir.

(Aproxima-se da borda do palco. Senta-se, encarando os espectadores, um a um. Por volta de 2’34”, a música sobe, é preciso fazê-la descer, de forma a não encobrir a fala)

2 – Fico no palco para fugir da platéia. Fico no palco sem ser ator. Fico no palco e fico lá fora. Vocês me vêem agora e nunca mais. Pois quando me canso saio fora. E quando vou embora não digo adeus. E quando volto não digo: ói eu aqui, esperando um abraço. (Levanta-se da borda do palco) Eu vou e volto. E como posso tudo sentem que fico. E como posso tudo sentem que vou. Um dia eu vou, para sempre. (Anda em direção ao fundo da plateia. A luz esmaecida não incentiva que o acompanhem com o olhar) Fujo sem parar adiantando esse dia, quem sabe. Fujo sem parar para morrer e ressuscitar, quem sabe. Fujo quando calo, quando falo, quando olho, quando viro o olhar. (Pausa longa. sem expressividade) Só queria mesmo um amigo. (3’43”) Mas os amigos aparecem quando eu fujo. Porque eu fujo de mim. E todo mundo foge. Todo mundo aceita quem não consegue fugir de si mesmo.

(Desaparece no fundo da platéia. A música continua até o fim, no palco e platéia às escuras. A partir de 4’00”, aumenta o volume da música, reverberando os sons graves e médios, atribuindo-lhe ainda mais gravidade. Máximo de volume no sino final. Fim da cena)

Cena 3

(Música: Spiegel im Spiegel, de Arvo Pärt. Tasmin Little (violino) e Martin Roscoe (piano). Bournemouth Sinfonietta, por Richard Studt (também violino II)).

(Escuridão. A música começa. Luz forte à esquerda do palco (referência: platéia). O corpo de 3 aparece, como já foi dito, deitado ao fundo do quadrado/retângulo, iluminado com luz muitíssimo fraca. 1 permanece quieto, fumando)

3 (Leitura a partir de 1’20”. sem expressividade. Pausadamente. Até o fim) - Eis-me então, nu, como Você sempre quis e eu relutava, por medo. Eis-me cansado de trilhar atalhos sozinho, rumo a lugar algum. Você me tem agora, aqui, e apesar disso ainda reluto. Não sei mais se ando, se páro ou se me dirijo a algum lugar. Estou exausto e não consigo encontrar um cantinho sequer no mundo em que possa descansar minha alma. Mas agora tenho alma. (Pausa) Eis-me então, totalmente à deriva, face à escolha de amar ou morrer. Era aqui onde eu queria chegar, mas eu não sabia. Foi Você quem me obrigou a descobrir. Aqui, em meio a tantos que amam, e tantos que morrem por recusar-se a amar, nada mais existe. O mundo continua girando, mas aqui isso não faz a menor diferença. Nada que possa vir a existir merece aqui qualquer atenção, se não vier por amor. (Pequena pausa) Sei disso agora. Tenho amor. (Pausa) Eis-me aqui, então, assoberbado de saberes inúteis, sem nada a não ser uma escolha. Dar tudo para nada querer, confiando em tudo poder merecer. Mas sem que isso não dependa de nós. Aqui nenhum mérito pode me dar qualquer coisa. Aqui, tudo é gratuito, mas nada é à toa. Tudo que aparece some sem deixar rastro. Quem não ama aqui morre de inanição. Foi Você quem me quis aqui. E só ficarei se Você permitir. (Música desaparece gradativamente, com o desaparecimento da luz)

Interlúdio

(Música: 01 01 Faixa 1, de Msa Glakolskaya, de Leos Janacek, extremamente forte)

(Luz forte que inclui a platéia, 1 e 3, apenas por um instante. Num determinado momento, 1 vira a cadeira face o espelho, sentando-se frente a si mesmo, e 3 vira-se para o outro lado de si mesmo. Os movimentos, extremamente rápidos, não chegam a se completar, quando a luz desaparece)

Ato 3

(Cenário. Quadrado/retângulo 5. Quadrado/retângulo, vazio. Cadeiras de plástico no palco, fazendo um U ao redor de um homem sentado numa cadeira verde, de plástico, de criança. Ninguém se senta nas cadeiras. Uma vela como iluminação (acesa por um contraregra). O homem segura um gravador. Fica de cabeça abaixada e com um nariz de palhaço, que é difícil de ver.)

(Gravador ligado. Música ao fundo: 04, de Moods Reflections Moods, de Fabio Caramuru)

(Texto (gravador), a partir de 0'30"):

Gravador - Cheguei. Olha eu aqui.

(tempo)

Gravador - Alguém me pôs aqui. Alguém me disse: sobe lá e diz alguma coisa. Sobe lá. Ocupa o teu lugar. O TEU lugar.

(tempo)

Gravador - Eu me lembro. Eu passava a minha vida onde vocês estão. Foram anos assistindo, agüentando, aplaudindo. Às vezes não.

(lembra)

Gravador - Uma vez eu saí no meio. Só uma vez.

(tempo)

Gravador - Dizem que é preciso coragem para pisar este palco. Qualquer palco. É o risco do ridículo. O medo de errar. Ficar mal na fita.

(tempo)

Gravador - Muitos ficam onde vocês estão apenas por medo. O mesmo medo de errar. No fundo, vocês gostariam de estar aqui. Eu sei.

(tempo)

Gravador - Mas muitos de vocês jamais vão pisar qualquer palco. Por medo. Falta de oportunidade. Vocês dizem que não, que não é isso. Que só vêm aqui se divertir.

(tempo)

Gravador - Dizem que preferem ver. Assistir. Pagam (ênfase) para que os outros os divirtam.

(tempo)

Gravador - Ninguém pediu para eu vir aqui. Eu mesmo quis.

(tempo)

Gravador - Eu sou o autor desta peça. Estas palavras que vocês ouvem fui eu que escrevi. Nada demais.

(tempo)

Gravador - É a segunda vez que escrevo uma peça. A primeira foi há alguns meses.

(tempo)

Gravador - Aquela primeira peça era uma espécie de desabafo. Comecei assim. Eu estava lá na frente, vendo tudo. Morrendo de vontade de rir. De estragar tudo.

(tempo)

Gravador - Sabem, o Nélson Rodrigues era fissurado pelo buraco da fechadura. Pois é. Para mim o buraco é aqui.

(tempo)

Gravador - Na frente de todos. Para mim, é assim.

(tempo)

Gravador - Sabem minha peça? Aquela? Ninguém viu. Podem rir.

(levanta a cabeça. tempo)

Gravador - Mentira. Foram uns amigos. Uns amigos sempre vão. Outros, nunca.

(levanta-se. deixa o gravador na cadeira)

(tempo longo. suficiente para mostrar o rosto, o nariz de palhaço, a face descorada, o semblante vazio)

(dirige-se à platéia)

(dirige-se a um homem da platéia, mais velho)

(o texto continua em off)

Gravador - O sr. é meu amigo?

(se a pessoa faz menção de responder, o palhaço coloca o dedo na boca, fazendo o gesto de silêncio)

Gravador - Está aqui porque é meu amigo?

(continua avançando em direção à platéia. dirige-se a outra pessoa)

Gravador - Eu não me lembro de você. Você é alguém? É alguém importante? Um crítico? Um crítico não é alguém importante. Claro. Mas eu preciso de gente importante. Afinal, eu quero ficar famoso, né. Então, você é alguém importante? Não?

(avança para outra pessoa)

Gravador - Você me lembra uma pessoa. Alguém. Não me lembro quem.

(o gesto de dirigir-se repete-se diversas vezes, até o gravador parar. a música 04 de Moods Reflections Moods precisa terminar mais ou menos nesse momento, ou seja, em 4min05)

(volta-se ao centro do quadrado/retângulo, cai, suave, como se assumisse uma posição fetal)

Gravador - Sabem, sem vocês, minha vida seria diferente.

(o gravador continua, agora perguntando)

(Agora o homem responde)

Gravador - Você gosta de chamar a atenção, não é?

Homem - Sempre gostei. Desde os cinco anos. Eu dançava na frente dos meus tios. Eles riam e aplaudiam muito. Eu devia me achar importante.

Gravador - Mas quando foi a primeira vez que você REALMENTE pisou no palco?

Homem - Foi numa peça. Eu disse um texto. A platéia estava lotada.

Gravador - O que você sentiu na hora?

Homem - As luzes estavam todas em mim. As pessoas não pareciam elas mesmas. Elas me olhavam. Eu me sentia sendo dissecado. Como se fosse um animal. Como se eu estivesse sendo testado. Diga a verdade, as pessoas pareciam pareciam dizer. Voltei à coxia. De repente entendi. Até aquele momento eu havia sido ninguém.

Gravador - Você gostou, então?

Homem - Adorei. Pensei: este lugar é MEU. Nunca tive um lugar meu. Passei a adotar o palco para mim.

Gravador - Você passou a sonhar cada vez mais em estar aqui.

Homem - Sim.

Gravador - Mesmo que isso te obrigasse a ser ridículo.

Homem - Isso.

Gravador - Como um palhaço? (tom de zombaria)

Homem - Um palhaço não é ridículo.

(tempo longo. homem com nariz de palhaço finalmente deita-se de costas e deixa-se sentir. passa lentamente a contorcer-se de dor, como se estivesse acordando ou nascendo. quando, após vários minutos, ele consegue engatinhar e encenar um andar, o texto é retomado, também no gravador. enquanto o texto avança, o palhaço começa a revelar seus passos, seus gestos, específicos)

(nova música: 23, de Yoñlu. tempo, para encaixar a cena com a música)

Gravador - Para que serve um palhaço? Um palhaço não serve para nada. O palhaço olha e engole. Toma tudo para si. Você não ri, ele se deixa afetar. Fica chateado. Abaixa a cabeça. Você ri, o palhaço adora. Se você grita com ele, ele chora. O palhaço expressa fragilidade. Ri e chora.Grita e lamenta. O palhaço é uma espécie de criança.

(o palhaço faz menção de sair do palco, sai aos poucos)

Gravador - O palhaço não está nem aí para o mundo. Com esse mundo aí. Esse mundo que dói tanto. Esse mundo tão difícil de aceitar. Mas nem por isso o palhaço é ridículo. Ridículo é aceitar e ficar calado. O palhaço não aceita. O palhaço sabe chorar. O palhaço ri.

(o palhaço sai)

Gravador - Nós, não mais. Nós vemos e ficamos calados. Guardamos a dor com a gente. Ficamos abraçados ao nosso rancor.

(tempo. só a vela como iluminação. música Yoñlu, suave)

Gravador - Exceto aqui no teatro. Aqui estamos todos juntos. Vocês, com vocês. Nós, conosco. Vocês com a gente. A gente com vocês. Sim, é assim. A todo momento, aqui, estamos todos juntos. Sempre foi assim. O teatro é isso.

(Fade out)

Ato 4

(Cenário. Quadrado 4. Quadrado vazio)

(Homem 1, de 40 e poucos. Com roupas esfarrapadas. Cansado. Suado. De costas para a platéia. Luz a pino nele. Ao fundo do palco, uma luz branca, que pisca. O ato começa com ele ajoelhado, olhando para a luz.)

(Um homem 2 à esquerda do primeiro homem, de preferência de boa estatura e esguio. De pé. Vestido com uma longa túnica preta. De preferência, careca. De perfil para o centro do palco. Luz lateral, suave).

(Uma mulher 3 à direita do primeiro homem, de frente ao segundo homem de túnica. De pé. Vestida com uma longa túnica branca. De preferência, com um longo cabelo preto. De perfil para o centro do palco. Luz lateral, suave.)

Homem 1 – Não. Eu não quero isso para mim.

(Pausa. Homem ensaia andar, com dificuldade)

Homem 1 – Isso eu sei que não quero. Isso eu sei.

(Pausa. Homem grita:)

Homem 1 – Eu disse que não quero isso para mim!!!! Não insista!!!!

(Pausa. A luz ao longe para de piscar e torna-se vermelha. Breve pausa. O homem faz que se recorda)

Homem 1 – Era assim que eu me vestia de criança, lembra?. Camisetas vermelhas. Bonés vermelhos. É essa a cor do meu Camaro dos meus sonhos. Ou é amarela? Sim, assim tá bom.

(Pausa. Ele se acalma. Senta-se no palco, ainda de costas para a platéia.)

Homem 1 – Eu nunca tive um periquito dessa cor. Alguém conhece periquitos vermelhos? Alguém aí conhece?

(Pequena pausa)

Homem 1 – Respondam!!!

(Pausa. A luz ao longe torna-se verde. Pausa. O homem encara a luz por alguns segundos, e se levanta com dificuldade.)

Homem 1 – Ele morreu nos meus braços. Minto, na minha mão. (Olha a mão). Estendia a cabecinha para trás, como se estivesse sonhando. Como se quisesse sonhar.

(Diz à luz)

Homem 1 – Você está aí? Você está aí? Me responde!!!!

(Pausa. A luz verde diminui suavemente. Pisca. Desaparece.)

Homem 1 – Você está aí? Você está ainda aí? (Suplica) Não vai embora, não. Por favor.

(A luz verde reaparece. Brilha, forte. Ilumina o homem, que se deita, curtindo a luz banhar o seu corpo)

Homem 1 – Obrigado, obrigado, meu querido. Eu sabia que você estava ainda aí. Posso descansar, agora. Um pouco, pelo menos. Tua lembrança reanima a minha vida.

(Homem 1 tira um celular do bolso direito. Abre uma tela da galeria, procura a foto do periquito morrendo. A foto aparece numa tela ao fundo do palco ao mesmo tempo em que ele a admira.)

Homem 1 – Ah, meu querido, o que poderia eu ter feito? Nada. Animal quando morre, morre mesmo. É a sua vez. Mas você sabia que tua memória é o que me mantém vivo, sabia?

(Pausa longa. O homem apaga a tela com a foto do periquito. Descansa, sentado no palco. Levanta-se. Começa a andar rumo à luz, que pisca mas permanece verde. Pausa longa. A luz a pino diminui. O homem desaparece rumo à luz verde. As luzes do Homem 2 e da Mulher 3 tornam-se mais fortes.)

Homem 2 – Longe demais. Longe demais.

Mulher 3 – Talvez não dê tempo.

Homem 2 – Uma pena.

Mulher 3 – Uma pena.

(Brevíssima pausa)

Homem 2 – Ele tinha tanto a oferecer.

Mulher 3 – Mas ele insistiu em andar sozinho.

(Breve pausa)

Homem 2 – Hoje a memória não o abandona.

Mulher 3 – Os fantamas o acompanham.

Homem 2 – Na verdade, não são os fantasmas.

(Brevíssima pausa)

Mulher 3 – É ele mesmo.

(pausa)

Homem 2 – Vive num mundo de sombras.

Mulher 3 – Qualquer luz faz para ele as vezes de vida.

Homem 2 – Qualquer uma.

(Breve pausa)

Homem 2 – É esse seu único luxo.

Mulher 3 – Sua única vaidade.

(O palco torna-se aos poucos totalmente iluminado. O homem 1 aparece lá ao fundo, tateando o caminho. O homem 2 e a mulher 3 viram-se para o fundo do palco. Música: Keith Jarrett, Köln Concert, última faixa. 30" de música, que após isso some aos poucos. A luz aumenta até o insuportável. Até que de repente desaparece. Fade out completo.)

Ato 5

(Cenário. Quadrado 1. Personagens. Dois homens, 1 e 2. Sentados da seguinte forma: um deles (1) numa cadeira, de costas para a platéia. O outro homem (2), vestido com avental, calça e sapatos brancos, numa outra cadeira, de frente ao primeiro homem, ou seja, de frente para a platéia. Os homens estão relativamente próximos um do outro. Tom de voz sempre intimista. Música: Keith Jarrett, Book of ways, ECM 1344/45 831 396-2, CD2, 1ª música. Até 0’31, abaixando gradualmente, até ficar de background.)

2: Agora você pode falar.

(pausa breve)

2: Você ouviu o que eu disse?

(pausa um pouco mais longa)

2: Tudo bem. Fale quando quiser. Eu estarei aqui. Por todo o tempo do mundo.

(pausa longa)

2: Passaram-se vários anos, não é?

(pausa)

2: Mais de vinte.

(pausa)

2: O tempo passa num instante.

(pausa um pouco mais longa)

2: Entendo que não queira falar.

(pausa)

2: É normal.

(pausa)

2: O tempo amortece as feridas.

(pausa longa)

2: Mas elas ficam.

(pausa)

2: Por isso estou aqui.

(pausa)

2: Para ajudá-lo a sanar as feridas que ficaram.

(pausa)

2: Todos precisam virar a página.

(pausa mais longa)

2: É por isso que estou aqui.

(pausa)

2: Para ajudá-lo.

(pausa mais longa)

2: Você entende?

(pausa longa)

1: Não há mais nada a dizer.

(pausa)

1: Eles venceram. Eu perdi. Só isso.

(pausa)

1: Além do que ninguém mais se lembra.

(de leve, 2 faz que não)

(pausa)

1: De que adianta trazer o passado de volta?

(pausa  um pouco mais longa)

2: Eu só vim porque você quis.

(pausa)

1: Eu não te chamei.

(pausa)

2: Chamou, sim. Só não se lembra.

(pausa mais longa)

1: Não quero mais lembrar.

(pausa)

2: Pode até ser. Mas você me chamou.

(pausa)

2: Tudo bem. Eu espero.

(pausa longa)

(Música: Keith Jarrett, Book of ways, ECM 1344/45 831 396-2, CD1, 8a música. Como background. Ao terminar, é repetida. Até 0’24”, descendo, ficando de background até dito em contrário. Só tocá-la uma vez.)

(relutando)

1: Quantos anos, mesmo?

(pausa)

2: Mais de vinte.

1: Desde que eu me formei.

2: Desde que todos foram embora.

1: E eu fiquei.

2: E você ficou.

(pausa)

1: Será que eles se lembram?

3: Lembram.

1: Você tem encontrado eles por aí?

3: Alguns.

1: (tentando agradar) Eu encontrei uma delas.

(2 não faz nenhum gesto)

(pausa)

1: Você não perguntou, mas ela parece bem.

(pausa)

1: Outro dia, um deles.

(pausa)

1: Falando difícil.

(pausa)

1: Mas não me lembro muito bem dele, nem dos outros. (pequena pausa) Nem de ninguém. Só flashes.

(pausa mais longa)

2: Também, foi você quem decidiu esquecer.

(pausa mais longa)

1 (triste): Foi.

(pausa)

1: (tentando se alegrar) Lembra daquela editorazinha? Dia desses, vi ela no jornal.

(pausa)

2: (incisiva) Aquela, que você enganou.

(pausa)

1: (assumindo o golpe, meio encabulado) É.

(pausa)

1 (contando para 2) Um dia, encontrei uma mulher que havia trabalhado comigo, mas eu não me lembrava.

2: Sei.

1: Ficamos de nos ligar. Nunca mais. E olha que ela mora perto de casa.

2: Sei.

(pausa)

1: (triste) Ele mesmo, só daquela vez nas escadas.

(pausa)

1: Fiquei apavorado. Saí correndo. Torcendo para que ele não tivesse me visto.

(pausa)

2: Muito estranho, isso.

(pausa)

1: Às vezes eu tomo banho fingindo que o tempo não passa, sabe?

2: E...?

1: Não, é que daquela vez eu fiz como se ele não tivesse me visto. Do mesmo jeito como tomo banho. Fingindo, sabe.

2: Ainda acho estranho. Afinal, é claro que ele te viu.

(pausa)

1: Você tem razão.

(pausa curta)

1: Mas, sei lá, acho que eu não consigo abordar os problemas de frente.

(pausa mais longa)

1: Fiquei sabendo da morte dele pela TV.

2: Pois é.

(pausa mais longa)

1: Dia desses, passei em frente aonde ficava a editora.

2: E...?

1: Nada, não.

(pausa)

1: É que por uns momentos acabei me lembrando. Só isso.

2: Lembrando de quê?

1: Sei lá, do prédio. Da rua, essas coisas.

2: E das pessoas?

1: Das pessoas? Muito de leve. Eu não me lembro. Ou não quero me lembrar.

2: Sei.

1: Tento não me lembrar. Mas não consigo esquecer.

(pausa)

1: (cabisbaixo) Machuca. Demais.

(pausa)

2: Você fica com vergonha, é isso?

(pausa)

1: (baixo) Acho que sim.

(pausa)

2: Vergonha de quê, exatamente?

1: Ah, sei lá.

2: (esperando resposta)

1: Ah, você sabe.

2: Sei.

(pausa)

1: (respondendo) Vergonha de ter desistido. Entregado os pontos.

(pausa mais longa)

2: Você fez o que podia.

1: É.

2: E até que você não se saiu tão mal.

(pausa)

1: Lembra quando eu tirava xerox de tudo o que encontrava?

2: Lembro.

1: Como se assim eu pudesse entender.

2: É.

1: Eu queria que os livros me levassem a resposta.

(pausa curta)

1: Eu tinha medo de conversar.

(pausa)

1: As pessoas me davam medo. Todas.

2: Entendo.

1: Eu não sabia mais distinguir as coisas.

(pausa)

2: Você consultou a psiquiatra, e ela te deu remédio para tomar.

1: É verdade. Um pouco.

2: Tentou fazer terapia.

1: Tentei. Mas era caro demais. Parei no meio.

2: Lembro.

(pausa)

1: Mas tanto esforço foi em vão. Afinal, não conseguia fazer nada.

2: Entendo.

(pausa)

1: Em casa, então, era muito pior. O barulho não me deixava em paz.

2: Lembro.

1: E se eu fizesse qualquer coisa, era culpado de uma coisa ou outra.

2: Sei.

1: Então. (cabisbaixo)

2: É doloroso lembrar, não é?

1: É.

2: Mas você até que se saiu bem.

1: (com tom de esperança) Você acha mesmo?

2: Dava para ver que você dava o máximo de si.

1: É.

2: Depois, não há nada do que se arrepender.

(pausa)

1: Como assim? Eu bati nele!

2: Bateu, sim. Mas ele precisava.

(pausa)

1: Eu sei, mas eu bati. (pausa) Só quem bate sabe o preço a pagar. (pausa) Sabe, foi como se algo tivesse se rompido na hora.

2 (consolando): Agora isso não importa.

1: (se afastando) Aí que você se engana.

(pausa mais longa. nas disposições do começo da peça)

2: Deixa eu só ver. Você diz que eles venceram.

1: Foi.

2: Quem, eles?

1: Ah, eles, todo mundo. Quem mais?

2: Mas como assim, todo mundo?

1: Todo mundo. Todos que me rodeavam naquele tempo. Todos os que me rodeiam lá onde eu trabalho. Todos os que de um jeito ou de outro conviveram comigo. Todo mundo.

2: (sorriso irônico) Você acredita MESMO nisso?

1: Não depende de eu acreditar. Em todo lugar, eles acabam me rodeando e dominando de alguma forma.

(pausa)

1: É como lá onde eu trabalho.

(pausa)

1: Falam comigo, depois falam com ela.

(pausa)

1: Nunca acreditam em mim.

(pausa)

1: É por isso que a culpa é de todos, sim, de todo mundo.

2: Culpa por você ter sido derrotado. Dessa forma.

1: É isso aí.

(pausa)

2: Mas vem cá, você se lembra quando jogou tudo para o ar?

1: Me recordo como se fosse hoje.

2: Ninguém te obrigou a isso.

1: Mas eu não conseguia fazer nada!

2: Não conseguia ou não queria?

(pausa)

1: Tá, não conseguia E às vezes eu não queria.

(pausa)

2: A verdade é que você se fechou em copas. Não queria que ninguém te dissesse nada. Você encalacrou que podia resolver tudo sozinho.

1: Isso é verdade.

2: Aí, quando as condições pioravam, você simplesmente culpava os outros para não assumir a responsabilidade. Por nada.

(pausa)

2: Lembra aquele dia em que Ele te aconselhou?

(1 assente)

2: Você simplesmente não deu a mínima.

(pausa)

1: Ela sempre me obrigou a fazer as coisas como ELA queria.

2: Tá.

1 (buscando assentimento): Eu TINHA que fazer as coisas como eu queria.

2: Sei.

(pausa)

1: Pelo menos ninguém tinha nada com isso. Não tinham que se meter, depois.

(pausa)

2: Você não entende que as pessoas fazem acordos entre si, que elas combinam coisas com os outros ou não. Elas são livres para isso. Assim como você foi livre. Afinal, as pessoas vivem em sociedade. Não como você.

(pausa)

1: Eu TENTO viver em sociedade.

2: Tenta, como? Você só se fecha!

1: Eu preciso me proteger!

2: De quem, de todo mundo, de tua esposa, de tua mãe, de todo mundo?

1: Eu não consigo acreditar em mais ninguém.

2: Por isso, dá de achar que todos estão contra você.

(pausa)

1: Todos conseguem trabalhar uns com os outros. Como eu não, todo mundo acaba, mesmo sem querer, trabalhando contra mim. É isso.

2: Não foi isso que te deixou nesta situação.

1 (assentindo): Isso, é.

(pausa)

2: Você diz que ela vai te largar.

1: Sim.

2: E que não adianta fazer nada.

1: Isso.

2: Então, por que você não É, simplesmente? Acredita, simplesmente?

1: Por medo de ser mandado embora.

(pausa)

2: Como lá? Foi você que fugiu.

1: Como em todas as tentativas de criar laços sinceros com alguém.

2: Não acredito nisso. Foi você quem sempre fugiu. Para não enfrentar as conseqüências.

(pausa longa)

1: Pode ser.

2 se levanta. Declama:

Quais são as qualidades que fazem um homem?
Um homem de verdade.
Não um menino.
Há quem recorra a religiões.
Outros, a filosofias.
A maioria apóia-se no bom senso.
Cada um fica com sua verdade.
Ninguém convence ninguém.

(pausa)

Os deuses da Grécia dominavam os homens.
Não havia esfera que eles não controlassem.
Marionetes é o que eram os homens.
Os deuses também lutavam entre si.
E quem perdia eram sempre os homens.
Existe uma palavra que define quem iria sofrer.
É a chamada hybris.
A arrogância, falta de medida.
Assunção de poder.
Nada pior – para deuses ou seres humanos.
Pois somente os deuses tinham poder.
É como pensavam os gregos.

(pausa)

Mas os homens também têm suas leis.
Para elas há toda uma série de instâncias.
Poderes. Funcionários. Juízes.
São eles que definem quem irá ser julgado culpado.
Ou inocente.

(pausa)

Foi por capricho que ele descumpriu uma delas.
E por isso foi condenado.
Ousou avançar onde não poderia.
Recebeu a resposta.
Hoje lamenta.
Se ainda fosse pelos deuses, ele assentiria.
Mas nos homens, nesses míseros homens,
ele não bota a mais mínima fé.
Por isso sofre.

(pausa)

Mas ele não tem em quem botar a culpa,
a não ser nele mesmo.
Por isso ele sofre como se tudo tivesse sido apenas um sonho.

(Música: A véia, da Discoteca do Chacrinha.)

Ato 6

(Cenário. Personagens espalhados pelo palco, em nenhum quadrado específico. Os personagens restantes dos outros quadrados permanecem no palco)

(Painel: Painel de 4 algarismos, lado esquerdo do palco. Algarismos iluminados em vermelho. Primeiro item que aparece, iluminado. Apresenta números em diversas ordens crescentes. Exemplo: 1001, 6038, 9005, 1002, 9006, 9007, 4500, 6039, 1003, etc. Os números aparecem a cada 10 ou mais segundos (não seguem padrão muito claro). Os números que aparecem estão no roteiro da peça e continuam a aparecer mesmo após o fim das falas. A leitura dos números não segue posição pré-definida no roteiro. Logo após qualquer número, uma porta se abre ou se ilumina, ao fundo.)

(Números: 2009, 1001, 6038, 2010, 7211, 5432, 9005, 3056, 1002, 9006, 9007, 4500, 6039, 1003, 2011, 2012, 5433, 9008, 1004, 9009, 3057, 7212, 6040, 4501, 2013, 1005, 8632, 2014, 1006, 6041, 5434, 2015, 5435, 9010, 8633, 3058, 4502, 2016, 6042, 3059, 7213, 1007, 1008, 2017, 8634, 4503, 9011, 5436, 5437, 6043, 7214, 7215, 7216, 5438, 4504, 5439, 1009, 2018, 4505, 8635, 9012, 3060, 5440, 6044, 8636, 3061, 4506, 8637, 1010, 2019, etc.)

(Som/música: Mixagem. Som de feira misturado a música de Anthony Braxton. O som de feira aparece primeiro; a música entra após alguns segundos (20s, mais ou menos). Música: Composition 69M, em Four Compositions (Quartet) 1983. Os acordes do começo da música repetem-se mais duas vezes no seu decorrer. Sempre que isso acontece, as falas/ações páram. O som de feira continua após o fim da música e após as falas/ações dos personagens e desaparece suavemente.)

(Personagens/objetos: Homem sem pernas (ou com pernas deformadas ou dobradas) sentado num skate, com o qual ele se movimenta.)

(Homem/mulher de pé, com grande seta pendurada no pescoço. O homem/mulher permanece o tempo todo cabisbaixo(a).)

(Mulher-segurança. Em pé no meio do palco. Vestida com roupa similar à de segurança particular (calça marrom, blusa azul escura). Mexe apenas os olhos, perscrutadores. Seu olhar cria constrangimento às personagens que se movem ao seu redor.)

(Homem/mulher dormindo, na rua. Com blusa de grandes listras vermelhas sobre branco, calça rústica e pés descalços, o homem/mulher esconde a cabeça na blusa e dorme ou finge que dorme, mostrando respiração ofegante.)

(Vozes dos personagens/objetos: Falam mas não parece que o fazem. Não há falas indicadas para um ou outro: os atores decoram todos os textos. Quem quiser, os pronuncia. As falam podem ser de um e do mesmo, em seqüência. As falas podem ser repetidas (um e outro). Só não pode haver excesso de repetição.)

Falas:
- A gente fica.
- Eles passam.
- O tempo passa, também.

- Olha aquele ali.
- Ele fica.
- Por enquanto, ele fica.
- E ela.
- Ela fica também.

- Depois ele vai.
- Ele passa.
- A gente fica.

- Dizem que quem vai permanece na lembrança.
- Não é bem assim.
- São muitos.

(tempo)

- Saiu na tevê que acharam os corpos.
- Eles se foram.
- Mas voltaram.
- Não voltaram. Acharam os corpos, apenas.
- Voltaram.
- Imaginou se não os achassem?

- A gente fica.
- Não é nada triste.
- É assim, simplesmente.

(tempo)

- Se esborracharam os dois.
- É chato falar assim.
- Foi o que aconteceu.
- Hoje ela sente falta da irmã.
- Eram muito apegadas.
- Foi na Anchieta. (rápido) Logo ali.

(tempo)

- (dramático) Queria ter lhe dado o meu adeus.
- Mas ele se foi sozinho.
- Todo mundo vai sozinho.

- É triste.
- Não é triste.
- É assim que é.
- Parece triste, mas não é.

(tempo)

- É curioso o que tem de gente que anda apressada por aí.
- Eles passam a toda velocidade.
- Correm contra o tempo.
- É a vida deles, em jogo.
- Um tempo precioso.
- A gente fica.

- O tempo tem outra dimensão para quem fica.

(tempo)

- Ele se foi.
- Faz tempo.
- Querem ressuscitá-lo o tempo todo.
- Mas ele morreu.
- Nós o matamos.
- Você e eu. Todos nós.

(tempo breve)

- Os humildes se ajoelham à sua passagem.
- Dizem: Graças a Ele.
- É o que dizem.
- Sentem a si mesmos o tempo todo escorregando.
- Realmente o tempo (pausa) escorre.

- Vocês ficam.
- Por enquanto vocês ficam.
- A gente, também.

(tempo)

- São muitos, todos.
- Uns aos outros, todos ligados.
- Um se vai, todos ficam sabendo.
- Um fica, diz Graças a Ele.
- Curioso.
- Se Ele se foi...

(tempo breve)

- Ele fica, sempre.
- Os outros é que se vão.
- Por isso ele Fica.
- Por mais que queiram dizer que não.

- Já a gente, a gente fica. Por enquanto.

(tempo)

- Bonita a imagem “castelos de areia”.
- Remete a praia. Ao mar.
- (lento) Os homens constróem castelos de areia.

(tempo breve)

- Muitos são necessários para decifrar as mensagens dos sábios.
- Muitos outros os seguem.
- Mas a isto aqui ninguém tem resposta.
- Falam dos que ficam, apenas. Não falam dos que se vão.
- Não falam daquilo que se vai com aqueles que se vão.
- Não falam da dor.
- A dor é indizível.
- (fala à parte sussurrando) Essa foi difícil.

(tempo)

- Todo dia é um novo dia.
- Quem pode, aproveita.
- Quem não pode, corre atrás.
- Tem aqueles que ficam no mesmo lugar.
- Como nós.
- A gente sempre fica no mesmo lugar.

- Houve uma época em que não era assim.
- Houve uma época em que algo acontecia.
- Conosco. Com nossa vida.
- Um dia, tudo parou.
- A gente ficou.

- Por isso, a gente fica.
- É como se o tempo não passasse.
- Mas ele passa.
- A gente apenas não sofre mais com isso.

(tempo breve)

- Dói.
- Sim, dói.
- Dói sentir que o tempo não passa.
- Que a gente fica.

(tempo)

- Teve aquelas meninas.
- Lá na Suíça.
- O pai,aquele safado.
- Foi condenado.

- Penso comigo: e a vida, agora?
- Há vida depois da m...?
- A vida é questão de ângulo. De que ângulo você está.

(tempo)

- O mundo entrou em pandemia e ninguém reparou.
- A ficção tornou-se realidade e a vida continuou a mesma.
- O avião se partiu ao meio e todos continuam voando.

- Imaginou vê-los caindo?
- A eles? A elas?

- Hoje, tudo aparece e desaparece sem deixar vestígios.
- Pois muitos outros se engalfinham por um lugar ao sol.
- Ao sol que fica.
- Por isso tantos ficam. Como a gente.

(tempo)

- A gente, a gente fica.
- Mas, ao contrário do que diz aquele sábio, a gente não espera.
- Ninguém espera.
- A gente apenas fica.
- Apenas.

Todos:
- E tudo foi apenas um sonho.

Os personagens permanecem em cena. Cai a luz.

Ato 8

(Música Sou sua, de Adriana Calcanhoto. Luz ambiente. Mulheres e homens saem de trás da plateia e dirigem-se aos personagens. Aproximam-se e conversam. Casais de todas as orientações sexuais são convidados a entrar no palco.)


(Fim da música de Calcanhoto. Escuridão total. Música Lua Singela, de Luís Capucho. Homens e mulheres se afastam - os móveis dos cenários são postos de lado pelos contrarregras - e observam uma exposição, por fotografias, de sofrimento resultante de guerras, fomes, ignorância, etc. Inclusive sequencias dialéticas, causa, efeito, nova causa. Ao final, fotos de felicidade. Até o fim da música. Ao final: "Dedicada aos filhos da puta que estragam o mundo".)